Famílias mostram que é possível conviver com estiagem se houver políticas adequadas ao Semiárido

Famílias mostram que é possível conviver com estiagem se houver políticas adequadas ao Semiárido

Edineide e Alvino mostram cisterna calçadão ainda com água para mais alguns meses

 

“Nesses quase 40 anos de sertão é a primeira vez que ficou um ano sem cair chuva no telhado de casa. A última chuva foi em Janeiro de 2016. No entorno da cidade, Juazeiro da Bahia, já choveu…Numa situação climática como essa, 20 anos atrás, o Nordeste já seria uma tragédia social e humanitária de proporções gigantescas, com centenas de milhares de mortos, sem falar nos migrantes e tantas outras mazelas sociais e humanitárias”, diz Roberto Malvezzi (Gogó), assessor da Comissão Pastoral da Terra sobre a estiagem que já dura seis anos.

De fato, se essa estiagem fosse há duas ou três décadas atrás, pessoas estariam morrendo e migrando de suas terras em decorrência dos efeitos da “seca”. Essa realidade, felizmente, ficou no passado em muitas regiões do Semiárido brasileiro. Mesmo com a escassez de água e as dificuldades que existem na zona rural, as ações de convivência com o Semiárido lideradas por organizações da sociedade civil que integram a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), garantem qualidade de vida e democratização do acesso à agua às famílias agricultoras e camponesas. Com simples infraestruturas de captação e armazenamento de água  da chuva e disseminação da cultura do estoque, as famílias garantem alimentação e água para o consumo próprio e para seus animais.   

É dessa forma que as organizações sociais e as famílias agricultoras rurais e camponesas vem mostrando que o problema da “seca” não é exatamente a escassez de água, mas sempre foi a ausência de políticas públicas adequadas à convivência com o Semiárido. Um exemplo disso é a família de Clarice Ribeiro Bastos Santos e Domingos Antônio dos Santos, moradores da comunidade Valentim, em Pilão Arcado-BA. O casal, que morou em Brasília por cerca de 10 anos, decidiu voltar para a terra natal e passou a produzir frutas e verduras no quintal, além de criar animais, como porcos, caprinos e galinhas. “Aqui a gente tem laranja, graviola, acerola, abacate, mexerica, seriguela, caju, umbu, banana, goiaba, manga e jabuticaba de frutas e verduras e hortaliças; um espaço para as criações de galinha, caprinos e porcos; e um roçado, com mandioca, milho, feijão, palma, melancia, maxixe, plantas forrageiras e uma área de caatinga preservada”, conta Clarice. A família prioriza a água da cisterna de consumo humano para beber e cozinhar. Para as demais necessidades, buscam outras fontes como a água do poço.

 

Clarice regando o canteiro de hortaliças com água armazenada

Esta é apenas uma das diversas experiências espalhadas pelo Semiárido. O SASOP, que assessora famílias agricultoras no Sertão do São Francisco, na Bahia, desde 1989, considera que conviver com o Semiárido passa pela produção e estocagem de alimentos para se viver adequadamente no período de estiagem. O principal bem a ser estocado é a própria água e, para isso, é preciso construir infraestruturas que garantam a captação e o armazenamento de água para consumo da família, dessedentaçao animal e também para a produção de alimentos agroecológicos em quintais, roçados e hortas urbanas, garantindo a Segurança Alimentar e Nutricional das pessoas e dos animais.

O segredo da convivência está em compreender como o clima funciona e adequar-se a ele. Não se trata de “acabar com a seca”, mas de adaptar-se de forma inteligente. É preciso interferir no ambiente, mas cuidando e preservando o bioma caatinga que tem riquezas surpreendentes em sua biodiversidade. “É essa cultura do estoque que garante que as famílias atravessem o período de estiagem sem muitas dificuldades, até que se possa produzir novamente. As tecnologias sociais para captação e armazenamento de água dão autonomia às famílias agricultoras”, afirma Carlos Eduardo Leite, coordenador do SASOP. “No entanto, elas correm o risco de serem substituídas ou reduzidas em prol das grandes obras hídricas, que ao longo de diversos anos mostraram que só serviam para alimentar a indústria da seca.  As cisternas de captação e armazenamento de água promovem independência das famílias, que passam a entender que chove no Semiárido e que se pode aproveitar essa água para beber, para produzir, para usar com os animais e criar outras tecnologias”, alerta.

Outra experiência que serve de exemplo é a da família de Edineide e Alvino Nascimento, da  comunidade Tamanduá, também em Pilão Arcado, que mesmo em plena estiagem de seis anos, consegue garantir sua própria alimentação e a dos animais, graças pequenas infraestruturas na propriedade. O casal possui uma cisterna de consumo humano de 16 mil litros, uma cisterna para produção de alimentos com capacidade para armazenar 52 mil litros e ainda um barreiro que serve para dar água aos animais na propriedade. “A gente não tinha a facilidade que tem hoje. Tinha de sair de madrugada e andar até 3 quilômetros para pegar água da cacimba, que ainda era salgada, ruim de beber, mas era a que a gente tinha”, lembra a agricultora. Por meio das formações e assessorias do SASOP, a família passou a diversificar os alimentos e a reservar uma área para plantas forrageiras. “Antes a gente só se preocupava em feijão, abóbora, mandioca e milho e esquecia da comida das cabras”, diz Edineide mostrando a diversidade de alimentos que tem hoje em sua propriedade de 17 hectares.

Dados da ASA revelam que, em todo o Semiárido brasileiro, são mais de 4 milhões de pessoas que já possuem acesso à água para consumo humano; mais de 600.000 pessoas possuem acesso à água para a produção de alimentos; mais de 3.500 escolas com cisternas que possibilitam a continuidade das aulas para mais de 175.000 estudantes; mais de 1.000 Casas de Sementes estruturadas por mais de 20.000 famílias. Pelo SASOP, até dezembro de 2016, foram construídas 37 bombas d’água popular; 31 barragens subterrâneas; 243 barreiros-trincheira; 1.027 cisternas calçadão de 52 mil litros; 372 cisternas de enxurrada; 19 tanques de pedra, além de 30 bancos de sementes comunitários nos municípios de Remanso, Casa Nova, Campo Alegre de Lourdes e Pilão Arcado*.

AGROECOLOGIA – A convivência com o Semiárido pressupõe também o cuidado e a preservação da caatinga e das relações do ser humano com a natureza e entre si e o cuidado com a saúde. Isso é o que aposta a Agroecologia. “A agroecologia já não é mais uma coisa estranha à convivência com o Semiárido, é uma abordagem que constrói a convivência com o Semiárido. Isso ajuda muito a gente a olhar de forma mais sistêmica a perspectiva de convivência, internalizando abordagens agroecológicas, como a discussão da biodiversidade e dos recursos genéticos e, de forma mais concreta, das sementes. Tenho certeza que podemos fortalecer as experiências comunitárias de produção de sementes, que são guardadas de geração para geração pelos agricultores e agricultoras familiares e que guardam uma grande variedade e riqueza genética”, ressalta Carlos Eduardo.

*Dados coletados no SIGANET, sistema de gerenciamento de dados da ASA.

Mais informações:

Escritório do SASOP em Salvador: 71 3335-6049
Escritório do SASOP em Remanso: 74 3535-1548
Luciana Rios –comunicacao@sasop.org.br

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