Em entrevista para o SASOP, Leonardo Boff fala de Agroecologia, Agricultura Familiar e Movimentos Sociais

Em entrevista para o SASOP, Leonardo Boff fala de Agroecologia, Agricultura Familiar e Movimentos Sociais

Da Crise à Esperança: Novos Caminhos para um Mundo do Bem Viver foi o tema que trouxe o Professor e Doutor em Teologia, Leonardo Boff, à Salvador, no mês de maio deste, para um diálogo promovido pelo Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP) e pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE). Em entrevista ao SASOP, Leonardo Boff fala da Agroecologia, dos movimentos sociais e agricultura familiar.

 

SASOP: Considerando o Da Crise da Esperança, como podemos vislumbrar um caminho em direção ao mundo do Bem Viver?

Leonardo Boff: Creio que estamos numa encruzilhada da história da humanidade, com a consciência de que, assim como está, o mundo não pode continuar. Porque há demasiada iniquidade social, há uma guerra sistemática contra o sistema terra, o sistema vida, que se pode levar a um colapso da vida e até o risco da espécie humana. Então, nós somos obrigados a mudar e há poucas fontes de inspiração. Tem a Carta da Terra, que representa um pouco da consciência da humanidade, novos princípios, novos valores, nova relação com a terra, e tem a Sagrada Encíclica do Papa, que fala como cuidar da casa comum, que é um documento mais completo que  a Encíclica Verde que trabalha só o ambiente. Ela trabalha o ambiente, a sociedade, a questão da cultura, a política, a espiritualidade, tem uma visão holística, profundamente inspiradora. Agora, a chave de tudo, tanto num documento quanto no outro, é a transformação!!! Temos que transformar, se queremos sobreviver. E essa transformação não pode vir do sistema. Porque o sistema dá mais do mesmo. Ele não tem recursos internos para resolver os problemas que ele mesmo criou. Então temos que pensar em outras fontes e aqui temos duas fontes a considerar, que são os povos originários do mundo inteiro, especialmente os nossos andinos, que elaboraram uma visão de produção em profunda comunhão com a terra, em respeito à natureza, sempre buscando harmonia com todos os elementos. Isso se chama Bem Viver. E a outra forma é a que as bases sociais da humanidade estão fazendo, os movimentos sociais mundiais estão buscando formas de tratar a terra, de construir, de cuidar das sementes crioulas, buscar um caminho novo para a humanidade, onde a palavra-chave é a sobriedade, a justa medida, aquilo que vai dar sustentabilidade, que é o processo que permite que todos os seres, especialmente os vivos, possam se manter e possam se reproduzir. E há uma experiência muito grande de todas as partes do mundo. É um elemento novo, que poderá fundar um outro estilo de civilização e que tenham uma relação nova com a natureza. A chave é essa. Não pode ser a clássica relação de nós em cima dela dominando.  E sim, a consciência de que pertencemos a natureza e formamos um todo. Nós pertencemos a natureza e temos de nos adequar as ritos dela. Se conseguirmos esse equilíbrio entre o que ela pode dar e o que nós precisamos, permitindo que a terra descanse, se reproduza… A busca fundamental é nesse caminho, esse futuro está se articulando cada vez no mundo, entre os movimentos sociais. E vai gerar cada vez mais práticas novas e, lentamente, outro tipo de civilização, outra forma de habitar o planeta Terra.

 

SASOP: Pensando ainda no campo da esperança, como cada indivíduo pode ser portador do futuro, ser essa semente de transformação, ?

Leonardo Boff: O que notamos hoje no mundo é um grande desamparo. Esse desamparo se deve a que o horizonte de esperança está se afastando cada vez mais. Isso se nota mais nos países do primeiro mundo – Estados Unidos e Europa – que alcançaram tudo o que quiseram e são infelizes, com altos níveis de suicídio, com pessoas na Franca, com quase 70% da população, que toma ansiolítico pelo desequilíbrio psicológico. E nós aqui do Sul sofremos pela pobreza, pela carência, mas, simultaneamente, somos portadores de muita esperança. Porque nos damos conta de que aquilo que estamos fazendo nos defendendo na sobrevivência, está tendo resultado. Na medida em que os movimentos sociais se articulam e organizam outra forma de agricultura, pequenas cooperativas, de cuidar das sementes, outra forma de consumir de forma mais responsável, de uma forma mais equilibrada, no fundo cuidando das coisas. Lentamente, vai surgindo um nicho de esperança, de que o mundo pode ser diferente e que esse mundo nós podemos construir, que não só é um mundo possível, mas um mundo necessário. Ou nós fazemos isso ou a humanidade inteira vai no encontro do colapso. Então, a esperança está nesses novos atores, que são vítimas desse grande sistema, mas que não perderam a esperança na vida, na esperança que a vida tem sentido, que podemos criar um mundo diferente a partir de nossa própria iniciativa, nos articulando entre nós. Isso é um movimento mundial que está se fortalecendo e se articulando. Como os grandes ricos também se articulam e fazem encontros, também os movimentos sociais estão fazendo e quem está mais propiciando o apoio disso é o Papa. Nunca na história da Igreja, um papa reuniu movimentos sociais mundiais (três vezes em Roma, uma vez na América Latina, em Santa Cruz de La Sierra), dizendo a eles que não esperem nada do sistema dominante, porque ele é assassino, é anti-vida, só produz o empobrecimento. Confiem em vocês mesmos. Sejam uma semente porque a semente contem tudo dentro dela. Contém as raízes, contém o tronco, contém as folhas, contém as flores, contém os frutos. Então, se considerem uma semente e, juntos com outras sementes, será uma seara de elementos novos que vão nascer. E nasce da experiência de vocês. Então eu acho que devemos depositar confiança nessa reserva de humanidade que existe entre os pobres do mundo inteiro que são as grandes maiorias que resistem, que querem viver, mas apoiada por outros que não são pobres como eles. São aliados dos pobres, que se solidarizam com os pobres, que são os intelectuais, são os grupos da universidade e da pesquisa, muitos ecologistas famosos que apoiam esses movimentos, que são os auxiliares. O protagonismo está entre os pobres, entre as vítimas do sistema. Esses que são os portadores do novo. Nós que entramos e ajudamos, apoiamos, damos visibilidade, porque os meios de comunicação escondem esses avanços todos. Então acho que, se nós repararmos em cada estado no Brasil… Aqui tem o SASOP, no Rio Grande do Sul tem novas cooperativas, em todas as partes tem grupos que representam a esperança e dá sentido a vida das pessoas porque elas veem os produtos que produzem, colocam no mercado, circulam entre eles, colocam uma alimentação saudável, os filhos que crescem em contato com a natureza, que aprendem com a natureza, com a observação dos fenômenos, com uma nova relação, uma nova integração com o todo e, isso, creio que aponta para um outro tipo de morada no planeta Terra e outro tipo de civilização. Esse tipo de mundo que temos tem que morrer. Não o mundo que vai desaparecer, mas esse tipo de mundo tem que desaparecer porque é demasiadamente agressivo, anti-vida e poderá em colapso a própria espécie humana porque criamos o princípio da autodestruição, armas químicas, biológicas, nucleares, que podem eliminar por 25 formas diferentes toda a vida, especialmente a vida humana. Não podemos aceitar isso. O sofrimento que vivemos hoje é o sofrimento de um parto, de uma criança nova que está nascendo, e ela esta nascendo no meio desses movimentos mundiais, que estão cultivando essa nova esperança, esse novo sentido de viver.

 

SASOP: A Agroecologia, nesse sentido, pode ser um caminho?

Leonardo Boff: Um grande caminho que está sendo ensaiado, porque é uma proposta alternativa a toda essa tecnologia dos transgênicos que, no início, tinha um entusiasmo na ilusão de que produziria alimentos em abundância para a humanidade, mas, na verdade, ela não se destina a alimentar a população. Se destina ao mercado, ao lucro das empresas. Aí também se deram conta das consequências perversas sobre a saúde humana. Porque nosso organismo, num processo de evolução de milhares de anos, não se preparou pra acolher esses elementos químicos e eles ficam depositados em nós, nas nossas células, e se transformam em cânceres e outras tantas doenças. A humanidade despertou para o risco disso, mas não basta. O que podemos fazer de forma alternativa? No fundo é recuperar a grande tradição da humanidade, que é a revolução do neolítico, que foi quando começaram a tratar a terra, a tirar dela o sustento, inventaram a irrigação, a reserva de sementes, o alimento dos animais, então essa agroecologia é uma forma de buscar uma lógica de cooperação terra – natureza – humanidade. Não pedir demais a natureza, mas sempre prestar atenção ao território, ao que chamamos de biorregionalismo, que é considerar que cada região é diferente, tem  suas montanhas, seus rios, suas matas, seus animais, um tipo de cultura que esta lá, então é uma infinidade de meios, bens e serviços da natureza. E, também, tecnológicos, humanos, que podem ser articulados e, aí sim, criar um desenvolvimento sustentável que tudo se dá ali usando o menos possível as energias fósseis, utilizando a própria energia da natureza que se transforma em adubo para a produção, cuidar das sementes e de seus bancos de sementes. Especialmente elas, as sementes! Porque essas são as mais manipuladas e ameaçadas porque atacam a fonte da vida. E isso a Agroecologia evita, criando toda uma reserva de sementes e, ao mesmo tempo, uma cultura de produção e consumo diferente dentro do quadro cultural que inclui elementos tradicionais, de festas, de celebracão dos seus poetas, seus heróis, dos notáveis que viveram lá, uma educação feita em contínuo diálogo com a natureza. Então, as escolas tem que abrir suas paredes, tem que levar seus estudantes para ter o contato com a natureza para senti-la  e despertar o respeito, o amor e o carinho pela “Casa Comum”. Cuidar das nossas águas, das nossa matas ciliares, dos nossos animais, para que não sofram tanto, não sejam tão submetidos a antibióticos, explorados, para que se tenha um trato humano com a natureza. Tudo depende da nova relação com a natureza, para que não seja mais de exploração, mas uma relação de cuidado, de sinergia, de trabalhar a energia da natureza com a energia humana e não fazer a natureza se adequar aos desejos humanos. Esse é o sistema passado. Temos que equilibrar o nosso desejo com o que a natureza pode dar sem perder a nossa vitalidade. Então exige uma arte da justa medida, de quando devemos intervir, deixar descansando a terra. A Agroecologia é um conjunto de valores e hábitos que fundem uma nova cultura e o fruto disso é produtos saudáveis e a consciência de que não basta só tratar a saúde do ser humano desgarrado da saúde da terra, porque nós somos terra. O homem vem de húmus, terra boa, terra fértil e há uma interação enorme entre ser humano e a terra, a água, o solo, o comemos e respiramos. Então, junto com a saúde humana, cuidar da saúde do nosso local e, havendo esse equilíbrio, o ser humano tem como efeito a tranquilidade e a paz, uma sociedade que se auto sustenta. E a Agroecologia também não é retrograda. Utiliza de tecnologias para saber os elementos químicos do chão, quais são os riscos de drogas, novos vírus que aparecem, tantos elementos que a ciência pode nos ajudar, mas, o eixo estruturador, não é a tecnologia, é a relação com a natureza e a tecnologia vem para melhorar e ser subsidiária dessa relação.

 

SASOP: Podemos então fazer relação entre Agroecologia e a Ecologia Integral que o Papa Francisco cita na Sagrada Encíclica?

Leonardo Boff: A Agroecologia é o lugar onde se dão as várias tendências da Ecologia. Primeiro cuidar da água, do solo, da biofertilidade, das matas, que garante a umidade e o equilíbrio dos climas. Mas temos, também, a Ecologia Social. Que tipo de sociedade temos? Ela é consumista, é esbanjadoura, ela agride a natureza, não cuida dos rios e das matas. Então, não é um tipo de sociedade que seja capaz de reduzir ao máximo a pobreza. Digamos que nunca chegaremos a total superação da pobreza, mas o máximo de integração das pessoas, para que se sintam parte, e aí o sentido de solidariedade, de compaixão, de mútua ajuda. Então, a Ecologia Social é importante para isso, porque ela que garante a sustentabilidade. Agora, mais importante ainda, acho que é a Ecologia Mental, que diz sobre o que se passa em nossas cabeças, que visões de mundo temos de natureza, de consumo, qual a ideia que fazemos do ser humano. E aí descobrimos que temos preconceitos contra os negros, contra os indígenas, contra quem é mais pobre e temos que nos libertar disso para tirar as barreiras que separam um ser humano de outro ser humano. Já Einstein dizia que é mais fácil separar um átomo que tirar o preconceito da cabeça de uma pessoa. É um trabalho grande de conscientização para saber conviver, com a diferença de culturas. Ser brasileiro de muitas maneiras, da maneira do gaúcho, da maneira do baiano, da maneira do mato grossensse. Saber conviver é valorizar isso com complementariedades e, fundamentalmente, elaborar uma ética do cuidado. Cuidar das pessoas porque tudo que nós cuidamos dura mais. E passando para gerações futuras, com uma terra mais integrada, mais limpa. Isso é Ecologia Mental. E tem a Ecologia Política. Se trata sempre política com poder, como se usa o poder, a acumulação de poder…Daí a importância das cooperativas, das empresas familiares, das empresas locais, que não visam o lucro simplesmente, mas o lucro necessário para poder se manter. O objetivo é criar uma qualidade de vida coletiva, para que todos possam ter o decente para viver, para o desafogo do ser humano, para não viver sempre na carência. Isso é como a Ecologia Política vê como o poder pode ser acumulado, mas com ética. E a ética do poder é reforçar o poder do outro, de maneira que todos possam participar, que o poder é um poder de participação nas decisões. Então, a discussão popular com as comunidades ajudam a definir essas prioridades. E tem também uma Ecologia Espiritual porque o ser humano não tem só fome de pão e convivência, que de alguma forma sacia, mas tem uma fome infinita, fome de beleza, de transcendência. Se pergunta o que é que vem depois dessa vida, o que podemos esperar da humanidade e a espiritualidade trabalha com essas questões, dizendo que há uma força poderosa que tudo sustenta, que chamamos de vários nomes. Chamamos de Shiva, de Alah, aqui vocês chamam de Olorum, Deus supremo da religião dos Orixás, chamamos Deus, que está misturado com as coisas. O ser humano pode se abrir em diálogo com ele, se ritualiza e se mostra por mais solidariedade mais amor, mais compaixão, mais convivência, com menos conflito possível, então essa dimensão espiritual humaniza o ser humano e estar numa sociedade mais leve menos tensa, e produz como efeito final a alegria de viver. Vale à pena viver nesse lugar, nessas paisagens, nesses rios, valorizar a casa paterna, as festas populares, seus carnavais, isso ganha um novo colorido, porque são expressões da dimensão espiritual, de valores não tangíveis, que não tem preço, mas tem Um grande valor. Isso tudo pertence a essa visão mais completa de Ecologia que é possível realizar, desde que nos limitemos ao nosso mundo. Porque até hoje havia uma fórmula única para o mundo inteiro, zregiões da Ásia, China, outra coisa. Então, para cada região, a sua Ecologia adequada, como foi a grande lição que Chico Mendes nos deixou dizendo – “Não apliquem na Amazônia as técnicas modernas da Ecologia. Respeitem a Amazônia, na sua singularidade. Nós queremos o desenvolvimento, mas adequado a Amazônia e, para nós, o desenvolvimento é deixar a floresta em pé. Ela rende muito mais do que derrubada”. O extrativismo é importante porque atende a população com abundância de frutos, diversidade de animais, de tudo isso. É fonte de um novo tipo de desenvolvimento.

 

SASOP: Em 2015, o Sr. participou de um evento produzido pela Articulação de Agroecologia na Bahia, pelo SASOP e pelo governo do Estado para debater a construção da política estadual de agroecologia para a Bahia. O Sr. chegou a conversar com o governador, a minuta foi elaborada, mas ainda não foi enviada para aprovação na  Assembleia Legislativa…

Boff: Nós precisamos saber como funciona o poder. O poder maior não é o poder político, não é o poder de um governador, nem de uma assembleia, mas dos grupos que elegeram esses deputados. Esses deputados não estão representando nossa sociedade? Que interesses corporativos estão representando? Quais são as empresas que estão atrás de vocês? Que interesses vocês tem? Só querem lucrar e continuar no sistema corrupto com o qual grande parte de vocês foram eleitos? Não todos, mas grande parte. Isso é constatado ao nível nacional, ao nível dos estados…Este é um ponto. Questão de poder. E poder só se combate com confronto, com outro poder, desde que seja ético. Não com elementos de violência, mas elementos de convencimento, de existência, de resistência, de acusação e isso vocês tem que fazer e se faz congregando gente. Se houver muita gente eles ficam temerosos e são capazes de abrir os ouvidos e atender.

 

SASOP: Que mensagem de ânimo o Sr. deixaria para o SASOP e para as organizações que buscam o fortalecimento da Agricultura Familiar diante do avanço do agronegócio?

Leonardo Boff: Hoje há uma luta que é desigual porque o agroenegócio ganhou proporções mundiais e o Brasil é o maior exportador de alimentos, com todo apoio do próprio governo, das grandes empresas, mas sabemos que esse negócio não é para saciar a fome dos brasileiros. É para fazer dinheiro lá fora. Mais de 60% de tudo o que vem para as nossas mesas vem da agricultura familiar. Então, o que vale mais, a vida ou lucro? É a agricultura familiar que sacia a fome das pessoas. Vocês tem que ter a consciência da alta dignidade que vocês tem de alimentar o povo brasileiro, de manter e fortalecer a agricultura familiar, de ter as produções agroecológicas. Que vocês se articulem para ganhar mais força, que procurem crescer mais e mais, em termos de volume, para atender de forma mais que satisfatória o mercado de consumo legítimo que é o consumo que a vida precisa. Então, eu acho que vocês tem que desenvolver essa autoconsciência da alta dignidade do trabalho de vocês, do serviço que vocês prestam a nação. O agronegócio não  é o que tem que marcar os rumos da nação. O Brasil pode ser, pela riqueza de seu solo, pela abundância de água, pelas sementes que ele tem, ele pode ser a mesa posta para o mundo inteiro. Isso não vem do agronegócio, vem da agricultura familiar. Que incorporem, inclusive, tecnologias sociais que melhoram a forma de fazer, mas não na perspectiva do lucro, mas na perspectiva de fundar as bases de sustentação para qualidade de vida, que seja justa e que seja decente. 

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