Cadernetas Agroecológicas valorizam o trabalho feminino no campo e a agrobiodiversidade

Metodologia desenvolvida em contexto de ATER promove desenvolvimento rural e empoderamento social e econômico das agricultoras do semiárido baiano

Por Bruno Machado/ SASOP

O estudo realizado pelo SASOP a partir de seu trabalho junto às comunidades rurais dos municípios de Remanso e Campo Alegre de Lourdes, no território Sertão do São Francisco e Semiárido Baiano, revela o protagonismo das mulheres na produção agroecológica, geração de renda e conservação ambiental, a partir do uso da metodologia das Cadernetas Agroecológicas. A pesquisa foi realizada no período de agosto de 2019 a junho de 2020, com 36 comunidades rurais dessas regiões e mobilizou 55 agricultoras. Em todos os casos, os dados indicam que, com a adoção das cadernetas, as mulheres melhoraram a percepção sobre sua contribuição para a melhoria da segurança alimentar, da renda familiar e na manutenção da agrobiodiversidade.

Segundo a FAO, a desigualdade de gênero e a discriminação contra as mulheres é uma das causas estruturais da pobreza rural e um dos maiores desafios para os países da América Latina e do Caribe. As mulheres são mais afetadas do que os homens quando se trata de pobreza extrema, apesar de contribuírem mais para o desenvolvimento local. Além do trabalho remunerado, como agricultoras, elas normalmente estão encarregadas de outras funções como a educação, cuidados e alimentação de seus filhos, das pessoas idosas ou em situação de dependência, e realizam trabalho comunitário a fim de alcançar melhorias para suas localidades. Mesmo assim, costumam ter suas contribuições invisibilizadas.

Mesmo com as conquistas mais recentes das mulheres no campo dos direitos, da afirmação social e do reconhecimento de sua importância fundamental para o desenvolvimento da sociedade, a desigualdade de gênero ainda é uma realidade a ser superada. O problema costuma ser mais sério no meio rural. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) alerta que estruturas patriarcais e machistas sustentam essas desigualdades e marginalizam produtoras agrícolas da América Latina e Caribe.

A aplicação da metodologia das cadernetas agroecológicas vem ajudando a reverter esse quadro de invisibilidade.  Realizada por várias organizações de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) como método de coleta de informações, as Cadernetas Agroecológicas apresentam grande potencial no registro da produção, comercialização, consumo interno e das diversas relações econômicas estabelecidas no dia a dia das mulheres rurais. Estas informações possibilitaram analisar as contribuições dadas por elas na economia familiar e na reprodução do agroecossistema. “Com as cadernetas, é possível visualizar as atividades não monetárias realizadas pelas mulheres como por exemplo o consumo, a doações e as trocas, que passam a serem consideradas nas análises econômicas”, explica Márcia Muniz, coordenadora do Programa Semiárido do SASOP.

As mulheres do campo sempre tiveram papel fundamental na construção e conservação da agrobiodiversidade, na segurança alimentar e nutricional, na saúde e na sustentabilidade ambiental de seus territórios, sendo, portanto, personagens essenciais para o desenvolvimento local das suas regiões, analisa Muniz. Os preconceitos históricos, porém, se manifestam na vida cotidiana das agricultoras, principalmente na distribuição da renda gerada pelo trabalho familiar e na falta de participação nos processos decisórios e presença nos espaços de sociabilidade, lazer e acesso a informações. “Essas desigualdades acabam por criar obstáculos ao crescimento das zonas rurais”, avalia ela.

As cadernetas permitem visualizar as atividades não monetárias realizadas pelas mulheres.

Os dados apresentados pela pesquisa com as comunidades atendidas pela ATER demonstram que, ao fazer uso da caderneta, foi possível dar visibilidade não somente à produção, mas ao protagonismo das mulheres do campo.  A Caderneta Agroecológica é um instrumento político-pedagógico que possibilita sistematizar seus trabalhos, bem como atribuir valores monetários e realizar levantamentos quantitativos das atividades econômicas protagonizadas pelas agricultoras. Mas o mais importante é o impacto que causa na autoestima das mulheres a partir do rompimento com os padrões que buscam desqualificar e inviabilizar o conhecimento, o trabalho e a participação feminina em todos os espaços da sociedade.

A agricultora Eliane das Virgens Sousa, do município de Pilão Arcado, conta que com o uso da caderneta, ela e as vizinhas aprenderam a contabilizar o valor da contribuição da mulher na renda mensal da família. “A caderneta mudou a minha vida e a vida das minhas colegas porque mostra o valor do nosso trabalho, que até então muitos homens não reconheciam. Isso nos estimula a seguir batalhando com mais vontade e, assim, poder gerar uma renda de mais qualidade para nossas famílias”, conta ela.

Dona Maria Solidade Rodrigues, da comunidade Carolino, município de Campo Alegre de Lourdes (BA), concorda: “a caderneta veio pra tirar as dúvidas que mulheres não produz nada, aqui estamos cheias de vontade de melhorar cada vez mais nossa atuação, seja em casa, seja junto à comunidade”. Solidade explica que a metodologia lhe deu a base para tudo que ela faz hoje, “me deu um novo contexto, mudou minha vida”, comemora. “Eu não tinha nenhuma ideia do quanto o que eu produzia, consumia, trocava e doava podia representar em um mês, mas desde que eu passei a contar com a caderneta, eu anoto tudo – ela me dá o suporte que eu preciso para o meu trabalho, fez muita diferença”, ressalta.

Metodologia

A primeira experiência do SASOP com a Caderneta Agroecológica se deu entre 2016 e 2018, quando a organização participou de uma pesquisa nacional realizada em parceria entre redes de mulheres, o GT Mulheres da ANA e um grupo de universidades e institutos de pesquisa públicos de várias regiões do Brasil. A partir de julho de 2019, através do Projeto Pró Semiárido do Governo do estado da Bahia, em parceria com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o SASOP passou a compor o conjunto de organizações inseridas no “Projeto de Formação e Disseminação do Uso Consciente das Cadernetas Agroecológicas”, que tinha por objetivo analisar a contribuição das mulheres rurais para a economia familiar e para a reprodução do seu agroecossistema.

Mapa da propriedade desenhado pela agricultora Ivaneide do Nascimento, da Comunidade de Tamanduá – Pilão Arcado/ BA

A utilização da metodologia segue alguns passos, organizados de forma estruturada da seguinte maneira: 1) Sensibilização da equipe de assessoria técnica para a sistematização da produção das mulheres agricultoras; 2) Capacitação das equipes de campo e sistematização; 3) Sensibilização dos coletivos e organizações locais de mulheres para a sistematização da produção das mulheres rurais; 4) Apresentação da metodologia da Caderneta Agroecológica; 5) Distribuição das Cadernetas Agroecológicas e capacitação das mulheres rurais; 6) Preenchimento das Cadernetas Agroecológicas; 7) Animação para manter a anotação cotidiana das Cadernetas Agroecológicas; 8) Coleta de dados das cadernetas e tabulação dos dados; 9) Aplicação e envio dos questionários; 10) Aplicação da metodologia do Mapa da Sociobiodiversidade; 11) Análise coletiva dos dados; 12) Reflexão coletiva dos resultados.

Trabalho de análise das propriedades em Pilão Arcado-BA. Imagem: Claricélio Nascimento/ Acervo SASOP.

Dentre as atividades produtivas desenvolvidas pelas mulheres, pode-se constatar que, de forma geral, os quintais têm uma grande relevância na produção diversificada de alimentos, como frutas, hortaliças, plantas medicinais e ornamentais, aves, suínos e grãos, principalmente. A observação revela que os quintais são o principal agroecossistema manejado pelas mulheres envolvidas na pesquisa e, enquanto sistemas agrícolas tradicionais, cumprem função ecológica e de conservação de alta diversidade de plantas, garantindo a variabilidade genética de muitas espécies – conforme aponta a pesquisadora Maria Gerlandia Rabelo Carneiro, da Universidade Federal do Ceará. Seu estudo, publicado em 2013 na Revista Brasileira de Agroecologia, trata da contribuição dos quintais produtivos à segurança alimentar e ao desenvolvimento sustentável local na perspectiva da agricultura familiar.

Os dados levantados nas 39 cadernetas sistematizadas indicam que a maior parte dos produtos são destinados para o consumo da família (Figura 1), seguido dos valores referentes à venda, e uma menor participação de doação e troca. No total, R$ 81.157,24 reais foi o valor movimentado e registrado pelas mulheres no período de 10 meses observado. Quanto à diversidade de produtos e serviços desempenhados pelas agricultoras, foram identificadas 171 variedades de produtos e serviços, distribuídos em 07 categorias. Em primeiro lugar, com 52% de diversidade, está a categoria de alimentos de origem vegetal, em segundo lugar, com 20%, está a categoria de plantas e preparos medicinais (Figura 2).

Figura 01. Produções socioeconômicas entre as mulheres rurais. Fonte: SASOP

Figura 2. Diversidade de produtos quanto a sua origem. Fonte: SASOP

Contribuições econômicas das categorias de produtos e serviços

“Se a dificuldade em analisar a importância do papel socioeconômico desempenhado pelas mulheres se referia à falta de abordagens metodológicas que garantissem a qualidade das informações coletadas, a proposta da Caderneta Agroecológica constitui-se em instrumento preciso de mensuração destas atividades, como se pode observar”, defende a coordenadora Márcia Muniz. Ao fazer uso da caderneta foi possível não apenas contabilizar, mas dar visibilidade à produção protagonizada pelas mulheres agricultoras, o que a torna um importante instrumento político-pedagógico de empoderamento social e econômico.

CategoriasValor   (R$)
Alimentos de origem mista6.714,38
Alimentos de origem animal33.483,47
Alimentos de origen vegetal36.330,64
Artesanatos e trabalhos manuais693,00
Mudas e Sementes15,00
Plantas e preparos medicinais379,05
Total Geral81.157,24

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