Buriti: dos Brejos para o Mundo

Experiência de valorização da economia do Buriti em Pilão Arcado é selecionada para evento Terra Madre na Itália 

O buriti é fruto de uma palmeira cujo nome tem, entre os significados, o de “árvore da vida“.
As fotos deste artigo são de Fernando Matos.

Por Bruno Machado – Comunicação/SASOP

De comida de brejeiro a dinamizadora da economia local, a extração e beneficiamento do buriti no município de Pilão Arcado vive hoje um crescimento superior às expectativas das comunidades envolvidas. No mês de setembro, a experiência desenvolvida em parceria com o Sasop e com a CAR, Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional – empresa pública vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), foi selecionada para integrar a programação do Terra Madre, o maior encontro mundial dedicado à biodiversidade e às culturas alimentares, realizado pelo movimento Slow Food, na Itália, a cada dois anos.

A cultura do buriti é tradicional nas comunidades da região dos brejos, no município de Pilão Arcado, localizado no território do Sertão do São Francisco, em pleno semiárido baiano. O feitio artesanal dos doces – principal forma de beneficiamento no local, é típico, normalmente legado às mulheres, que costumavam trabalhar sentadas ao chão, trabalhando o fruto e a polpa do buriti por dias, entre a secagem e a extração da massa que é matéria prima para os produtos.

“Dava muito trabalho, mesmo sendo feito coletivamente. Um único buriti precisa ser passado de 4 a 5 vezes para extrair a polpa, o que era feito sem nenhuma estrutura”, conta D. Eliane das Virgens Sousa Ribeiro, professora e presidenta da Associação Beneficente Brejos Dois Irmãos. A valorização do produto e do seu trabalho começa a mudar em 2016, quando a comunidade passa a receber acompanhamento técnico permanente e a pensar novas estratégias.

Processo de extração da polpa do buriti era feito sem infraestrutura adequada.
Foto: Nathan Dourado / Slow Food

Fernando Andrade, técnico do Sasop que acompanha o trabalho desde aquele ano, observa que a comunidade sempre foi bem organizada e que a chegada da assessoria contribuiu mais para a otimização dos processos e com mudanças na forma de pensar, trazendo especialmente o viés agroecológico para o processo. “Nesses seis anos com o nosso acompanhamento, as rodas de aprendizagem e visitas, fomos implementando pequenas e significativas mudanças, especialmente na questão ambiental. Em 2016, por exemplo, as pessoas matavam o buriti considerado ‘macho’, porque não dava frutos, portanto não serviria para nada, sem saber que eram responsáveis por uma produção mais robusta”, ele diz.

Um outro problema era a plantação da cana, que sempre teve valorização maior, por isso os buritizeiros comumente eram derrubados para dar lugar a canaviais. “O perigo nesse caso era maior ainda, porque, em pleno semiárido, os buritizeiros ajudam a segurar a água. Se são extirpados, os brejos secam e  a água fica mais escassa. Foi muito interessante fazer essa transição, com o buriti passando a representar mais que apenas uma possibilidade de extrativismo”, analisa Fernando.

Mas a grande revolução aconteceu mesmo com a chegada da agroindústria, que permite uma produtividade cerca de 30 vezes maior do que antes, com menos gente atuando em cada mutirão, o que gera muito mais lucro e tempo disponível para as famílias e a comunidade. Inaugurada no mês de março deste ano, a agroindústria de beneficiamento de buriti e cana-de-açúcar está instalada no Brejo Dois Irmãos. A obra no valor de R$ 438.900,00 foi concebida como parte das ações do projeto Pró-Semiárido, da CAR, cofinanciado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida).

A parceria com o Pró-Semiárido proporcionou a aproximação com a associação slow food Brasil por meio do projeto Slow Food na Defesa da Sociobiodiversidade e da Cultura Alimentar Baiana, com o intuito de levantar, valorizar e catalogar as riquezas social, vegetal e animal locais e que, além da comunidade Brejo Dois Irmãos, abrangeu o Brejo da Capoeira, Brejo do Carrasco, Brejo do Urubu e Brejo do Pequi. A partir desse levantamento dos sabores comunitários, foram identificados pelas famílias alguns produtos para serem incorporados à “Arca do Gosto” – catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de produtos ameaçados de extinção. Ela está presente em mais de 160 países, e já catalogou mais de 5 mil sabores, sendo 200 somente no Brasil.

É desse levantamento que o buriti ganha destaque, dentre mais de 50 ítens, justamente pelo seu potencial econômico. Quando o recurso da CAR é anunciado para investimento na comunidade, os planos eram bem modestos. “Naquele momento, não tínhamos uma noção completa do que poderia ser feito, então pensamos umas poucas ações para qualificar o trabalho, como cadeira para que as mulheres não precisassem mais sentar no chão e mesa de inox para descansar o buriti despolpado, por exemplo. Sabíamos da potencialidade, da qual nós sempre falamos, mas foi numa visita da CAR que compreendemos juntos que poderia ser feito algo maior”, explica Fernando.

Assim, sempre em consulta à comunidade, decidiu-se pela implantação da agroindústria. Uma decisão corajosa, dado que a região é de difícil acesso. “Muitos não acreditaram que daria certo”, relata D. Eliane, “mas insistimos e até descobrimos que existia a máquina de descascar buriti”. Mais difícil do que levantar as paredes, porém, foi dar início ao processo de gestão do negócio, porque era tudo muito novo.

“Fomos descobrindo e aprendendo, errando e acertando. Em muitas coisas já estamos profissionais!”, exclama a presidenta da associação. “Porque uma coisa é fazer um doce na panela ou no tacho, em casa; outra bem diferente é fazer em grande quantidade utilizando máquinas e associar todo o processo a números, anotações. Tivemos nossas dificuldades, mas enfrentamos. A estrutura também permite ter uma equipe flexível, com horários combinados. Mais recentemente, colocamos também os jovens para contribuírem com a gente e a experiência está sendo positiva”, reconhece Eliane.

Quando chegou o convite para ir à Itália, Eliane topou na hora. “Depois fiquei imaginando, eu do interior, nunca conheci outros lugares do Brasil, praticamente não saio daqui, conheço basicamente de Juazeiro para cá. Os sócios todos ficaram muito alegres porque é um marco na história da associação e da própria comunidade. Ninguém dos brejos nunca foi para o exterior e conseguimos isso pelo nosso trabalho. Entendo que quem viajou foi a comunidade, não eu. Uma pessoa que viaja enriquece a convivência de toda uma comunidade, pelas coisas que tem para contar, as coisas que traz na bagagem”.

Foi a equipe do Slow Food quem sugeriu a inscrição para a participação no Terra Madre. “Eles mandaram o link de inscrição e eu achei que era uma boa inscrever a experiência do buriti em Pilão Arcado. Fomos selecionados!”, conta Fernando. O evento, no entanto, só bancaria a ida do técnico como representante da iniciativa. Mais uma vez a CAR entrou no processo, viabilizando a ida de uma pequena comitiva, complementada por Pedro Xavier, do Slow Food, Egnaldo Gomes Xavier, representando o estado, e D. Eliane, da comunidade, junto com Fernando.

No dia 24 de setembro, eles se apresentaram dentro do painel sobre a Arca do Gosto. Cada um abordou a participação de suas organizações e trabalhos na construção da experiência do buriti em Pilão Arcado. Coube a D. Eliane arrematar, falando sobre suas vivências, a organização comunitária, o impacto da assistência técnica e a importância das políticas públicas para o desenvolvimento local.

“Foi muito bom porque, além de levar o que tem de diferente aqui, que muitas vezes a gente acha que é nada, a gente fica achando que aqui é só mais um lugar, mas chegar lá e ver os olhares das pessoas, o interesse, dizerem que têm vontade de vir conhecer de perto a experiência dos Brejos, é muito gratificante”, comove-se Eliane.

Para Fernando, foi também uma viagem de muitos aprendizados, sendo a organização produtiva dos europeus o maior deles. “Grandes ou pequenos agricultores que vi por lá, todos tinham uma organização muito grande da sua produção. Produtos com marca, bem rotulados, identificados. Reconheço que é uma outra realidade, mas tentei me atentar ao máximo a isso para a gente tentar pensar novos formatos aqui na nossa região também”, sinaliza.

Em 2016, quando iniciou-se o trabalho de assessoria  técnica do Sasop, a população de Pilão Arcado tinha um preconceito muito grande em relação ao buriti. “As pessoas diziam que era comida de brejeiro, que só servia para matar a fome”, lembra Fernando. “Muitos nem tinham conhecimento de sua existência no território e a gente falava ‘um dia o buriti vai ser reconhecido’. Com a ida ao evento na Itália completamos um ciclo: primeiro o buriti saiu dos brejos e foi para o centro de Pilão Arcado, depois para Juazeiro, então para Salvador e o Brasil, até que ganhou o mundo, graças ao nosso trabalho”. Mesmo assim, até hoje tem quem ainda tenha preconceito, mas a comunidade já não liga. “O buriti dos brejos tem nome e tem sabor, e não é só sabor de gosto, é sabor de luta, de trabalho, e a viagem para a Itália concretizou muita coisa que a gente sonhava”, conclui Fernando.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *