“Em se plantando, tudo vende”

Portal Marco Zero mostra em reportagem como o acesso ao mercado consumidor justo ajuda a mudar a vida de famílias agricultoras na Bahia

Por Sérgio Miguel Buarque e Inês Campelo – 10 de julho de 2024

Crédito das imagens: Inês Campelo

Campo Alegre de Lourdes (BA)

Nelita Pereira dos Passos, agricultora da Comunidade Carolino, em Campo Alegre de Lourdes (BA), tem planos ousados para os próximos meses. Ela pretende investir na ampliação da área do seu quintal produtivo para atender ao crescimento da clientela.

A ideia é ocupar um terreno, ainda sem irrigação, contínuo ao que já produz hortaliças e algumas frutas. “Nós queremos ampliar para poder plantar mais, fazer os canteiros para produzir mais coentro e tomates, que já estou com uns ali no ponto de mudança e não tenho espaço.” Mais espaço plantado significa mais produtos para vender e, claro, mais renda para família.

A alguns poucos quilômetros dali, no Sítio Tanque, Cármen Lúcia e o marido Antônio Damaceno esperavam sorridentes a equipe da Marco Zero para o café da manhã. No cardápio, uma reforçada panela de mocotó com bucho de bode que, além de garantir energia para o dia de trabalho puxado, era uma espécie de símbolo de fartura, garantida pela boa produtividade do quintal por trás da casa. No terreno de cerca de um hectare, dividido em uma área irrigada e uma área de sequeiro, o casal planta de tudo um pouco (são cerca de 40 produtos diferentes) além de criar cabras e galinhas.

Nas duas casas não havia sinal de ostentação, longe disso. Mas em ambas, alguns detalhes mostravam que a vida estava melhorando e, como vocês poderão constatar ao longo da reportagem, não se tratava de casos isolados. Em uma rápida olhada pelas duas cozinhas, por exemplo, era possível ver todo tipo de eletrodoméstico, do liquidificador ao air fryer. “Só não tenho cafeteira porque gosto do café passado na hora”, brinca Lúcia com um sorriso de satisfação como que comemorando os “pequenos luxos” que conquistou.

Mas nem sempre foi assim. Há menos de três anos, Nelita, o marido Manuel e o restante da família viviam apenas com os recursos dos programas sociais do governo e com o que conseguiam colher da lavoura de subsistência plantada no período de chuva. “Até então, a gente não mexia com nada disso. Vivíamos do que conseguíamos. A gente só produzia mesmo para o consumo de casa, que era o milho, o feijão e umas galinhas”.

De certa forma, era o mesmo com Lúcia e Damaceno. Há uns quatro anos, o casal não tinha renda fixa e nem um quintal tão diverso e produtivo. Com isso, a economia doméstica dependia dos programas governamentais, da “boa vontade” das chuvas e do incerto comércio “na rua”. “Era muito ruim você plantar sem ter a garantia de que iria conseguir vender”, lembra Damaceno.

Foto colorida da família de Nelita Pereira Passos, que foi fotograda sentada em uma cadeira de plástico branco. Seu marido e os dois filhos estão em pé por trás dela. O marido é um homem moreno, de pele bronzeada, usando uma camisa roxa de mangas compridas (provavelmente uma antiUV) e bermuda jeans. O filho mais novo é um adolescente magro, de pele clara bronzeada e cabelos escuros e curtos, usando camiseta azul escura. Ele está com as mãos sobre os ombros de Nelita. O filho que aparenta ser mais velho está à esquerda, usando camisa branca com mangas e gola amarelas, com um calção azul. Ele também tem cabelos curtos, mas tem bigode e um cavanhaque ralo. A família foi fotograda dentro de casa, com uma a televisão instalada num painel de madeira escura ao fundo, uma janela fechada na parede à esquerda, modem instalado e na parede e telhado com telhas e caibros de madeira à mostra.
Não há luxo na casa de Nelita, mas ela tem equipamentos que seriam impensáveis há alguns anos
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Os fatores da mudança

A transformação na vida das duas famílias – e na de dezenas de outras do município – foi a conjunção de, pelo menos, dois fatores estruturantes. Ambos resultado de muita articulação, mobilização e luta a partir da organização das agricultoras e agricultores com o apoio da sociedade civil.

O primeiro fator transformador, surgido bem antes de Nelita ou Lúcia pensarem em ter seus próprios quintais produtivos, foi a consolidação do conceito de “Convivência com o Semiárido”, muito em consequência da mobilização feita pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) a partir do final da década de 1990 e que orientou diversas políticas públicas abrangentes. Você pode acompanhar muitos aspectos dessa revolução silenciosa que acontece no semiárido nordestino lendo as outras reportagens já publicadas da série A Reinvenção do Nordeste.

Para se ter ideia de como as estratégias de convivência com o semiárido causaram impactos tanto econômico quanto social basta ver o levantamento feito por Denis Monteiro na sua tese de doutorado em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ): Gente é pra brilhar: Interpretação do desenvolvimento de comunidades camponesas do Sertão do São Francisco.

De acordo com o estudo feito por Denis, em 1991, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município de Campo Alegre de Lourdes era 0,273, passando a 0,365 em 2000, e chegando a 0,557 em 2010 (o último disponível). “Apesar de ainda baixo, sua nítida evolução indica ter havido mudanças positivas muito significativas desde o início dos anos 1990”, concluiu.

O segundo fator, pelo menos em Campo Alegre de Lourdes, é bem mais recente. A maior apropriação da riqueza produzida a partir das tecnologias sociais de convivência com o semiárido foi possível pela inserção das famílias em iniciativas de venda direta aos consumidores, associada ao apoio técnico qualificado, ao engajamento em associações e cooperativas que comercializam a produção das comunidades e a integração a eventos onde a produção é vendida e onde se forma clientela como, por exemplo, as feiras agroecológicas.

Lá, especificamente, os mercados institucionais começam a ganhar mais força a partir de 2021, quando aconteceu a primeira tentativa de acessar, de forma articulada e coletiva, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

“Isso aconteceu de forma gradativa. Em 2021, o valor foi muito pequeno, mesmo assim, as famílias não desanimaram. Em 2022, a gente já foi para um valor bem mais interessante, passando para quase R$ 600 mil. Agora, em 2024, a gente já tem contratos firmados de quase um milhão de reais”, explica Francisco José da Silva, conhecido por todos com Franzé, que é assessor técnico do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP) nos territórios de três municípios da região: Remanso, Campo Alegre de Lurdes e Pilão Arcado.

O programa ganhou força, passando a ter mais relevância e impacto na vida das pessoas, quando o poder público (a prefeitura de Campo Alegre de Lurdes, no caso), passou a destinar 100%, do que é repassado pelo FNDE, para a compra de produtos da agricultura familiar, indo muito além dos 30% determinado por lei. Além disso, a prefeitura tem trabalhado em parceria com a sociedade civil organizada no mapeamento e definição de um preço justo para o que é produzido no município. O resultado desse esforço subsidia a elaboração da chamada pública, instrumento legal que define das famílias agricultoras e todos os parâmetros para a elaboração dos contratos.

Para ver como isso tem sido um diferencial importante, é só fazer um contraponto com o município vizinho de Pilão Arcado. Segundo Franzé, por lá o processo está muito mais difícil. “Saiu a chamada pública com produtos que não são de produção da região, totalmente fora de contexto e com preços abaixo do mercado. Ou seja, foi uma chamada pública elaborada sem fazer aqueles primeiros processos: mapeamento e cotação de preço. Então, só pra ter uma ideia, lá eles querem batata-inglesa, um produto que não é de nossa região. E tá lá. Quem vai fornecer? Vão ter que pegar de um atravessador…”

Para Franzé, o que acontece em Pilão Arcado e em outros municípios que sequer cumprem a cota de 30% de compra para o PNAE na agricultura familiar, o problema não é desconhecimento técnico ou da legislação. “Eles têm o conhecimento de que a chamada pública para a compra de produtos da agricultura familiar tem que ser regionalizada. Na verdade, é falta de vontade política”.

Falta vontade política e falta visão administrativa, para dizer o mínimo. “Quando eles (os prefeitos) derem a importância devida a essa política dentro do seu município, eles vão abraçar essa ideia e nunca mais vão largar. Porque é isso, é fazer com que o recurso gire dentro do próprio município, Se ele paga para o agricultor, o agricultor compra no seu comércio”, explica Franzé.

O fato que a entrada no PNAE transformou a vida de muita gente. Atualmente, são 68 famílias que participam do programa no âmbito municipal. O contrato assinado para 2024 prevê o valor anual de R$ 982.874,16 para compras na agricultura familiar. Isso dar um valor médio próximo dos 15 mil reais para cada família participante. São quase R$ 1.250 por mês. “É mais de um salário-mínimo por mês e é melhor do que o Bolsa Família”, calcula Damaceno que, junto com Lúcia, que desde 2022 fornece para o PNAE.

Cármen Lúcia fala de outro motivo de satisfação que não tem relação direta com ganhos materiais: “Nossos filhos passam a ter alimentos saudáveis na escola. Às vezes, minha filha Vitória [de oito anos] diz: ‘mamãe’, vi os mamões que você levou lá na escola”.

A cena retrata um casal de pessoas de meia-idade juntas, com os rostos colados. À esquerda, o homem tem cabelos brancos e usa uma camisa de listas verdes e brancas. À direita, a mulher de cabelos castanhos e curtos, usa óculos, brincos grandes e dourados, e está vestida com uma blusa ou vestido verde escuro. Elas estão ao ar livre, cercadas por altos pés de mamão que se estendem em direção a um céu azul claro. As folhas dos mamoeiros são exuberantes e verdes, e uma das árvores tem um cacho de mamões pendurados acima. O sol brilha intensamente através das folhas, criando um efeito de luz difusa ao redor da cena.
Antônio Damaceno e Cármen Lúcia fornecem alimentos para as escolas estaduais
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

Lúcia e Damaceno também fazem parte do grupo reduzido de famílias que vendem para o PNAE do governo estadual da Bahia. Por questões burocráticas, são apenas três pessoas formalmente inscritas que representam algumas outras de suas respectivas comunidades. Elas recebem algo em torno de R$ 11 mil por ano. Leandro Nonato de Lacerda, que mora na comunidade tradicional de Fundo de Pasto Lagoa do Gato, fornece desde 2021 para o PNAE, tanto o municipal quanto para o estadual, é um dos coordenadores do programa. Segundo ele, os benefícios do PNAE vão além das famílias que assinaram contrato. “Acaba beneficiando cerca de 300 famílias indiretamente. Isso porque, quando não temos o produto solicitado para entregar, pedimos aos outros da comunidade”.

Leandro, que é um dos coordenadores do programa, explica que são nove grupos de agricultoras e agricultores, cada um com um representante, que se articulam através do WhatsApp. “A nutricionista (que define o cardápio das escolas municipais) pede o que precisa, geralmente, na sexta-feira, e os representantes organizam a divisão entre os produtores para a entrega nas segundas-feiras”.

Para ele, a vantagem de participar do PNAE é muito grande. Além de oferecer produtos naturais para as escolas, aumenta nossa renda”. Melhorou muito nossa vida. Hoje é a principal fonte de renda de muitas famílias”.

Bom para todos

A importância do PNAE vai além da questão da garantia de renda para as famílias agricultoras ou o incremento da economia local. É possível elencar uma série de benefícios que essa política pública traz, não só para as pessoas envolvidas diretamente no processo como para a sociedade como um todo:

  • Convivência sustentável com o meio ambiente;
  • Empoderamento das mulheres que passam a receber os recursos em suas próprias contas bancárias;
  • Envolvimento da juventude, com aumento de renda e sentimento de pertencimento;
  • Transparência no processo de compra dos produtos e diminuição da corrupção;
  • Segurança alimentar das crianças que passam a ter uma alimentação de qualidade na escola.

“Todo dia aprendo algo”

Conseguir assinar o contrato com a prefeitura e o Governo do Estado para vender a produção para o PNAE foi uma vitória. Mas entregar os produtos na quantidade, qualidade e prazos acordados, tão fundamental para a continuidade do programa, não é uma tarefa fácil para as famílias agricultoras. É aí que entra o apoio técnico.

O SASOP, onde Franzé trabalha, faz parte da Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural Nordeste (Rede Ater NE), e tem um papel importante nesse processo. Atualmente, o SASOP atua em quatro municípios do Sertão do São Francisco: Campo Alegre de Lourdes, Remanso, Casa Nova e Pilão Arcado, acompanhando famílias de agricultores/as, pescadoras artesanais e as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto. A atuação em Campo Alegre começou ainda no início da década de 2010, com foco na apicultura, e foi se expandindo e diversificando para a caprinocultura, quintais agroecológicos, beneficiamento de frutas e acesso a mercados.

A imagem mostra um grupo de mamões verdes pendurados em uma árvore. As folhas da árvore são largas, com bordas lobadas, e o céu ao fundo está claro e azul. O sol brilha intensamente através das folhas, criando um efeito de lente.
Dos quintais e roças, as frutas seguem direto para a merenda escolar
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

“Não existiria a participação no PNAE sem o apoio da assessoria técnica. Como a gente iria acessar o programa?”, questiona Antônio Damaceno. Para ele, a assessoria técnica resultou no aumento da produtividade e, o mais importante, a qualidade dos produtos. “A gente vai aprendendo todo dia. Sempre tem algo para melhorar. Na semana passada, por exemplo, aprendi a usar água oxigenada para combater um fungo que dá na laranjeira”.

O sentimento de Nelita é semelhante ao de Damaceno. “Mudou, mudou bastante, porque a gente pegou experiência. Antes, a gente não sabia nem para onde ir. Agora, o pessoal do SASOP está sempre apoiando, ensinando o manejo de tudo”. Desde que começou a receber o apoio, ela conta que passou a aproveitar mais a área do quintal e, assim, pôde ter mais produto para vender: “na verdade, o bom é ter a renda, que antes só produzíamos para comer.”

Sábado é dia de feira

Há cerca de 30 anos que as comunidades vendem seus produtos na feira da cidade. Só que isso era feito de forma individual, misturado com os demais comerciantes. De forma organizada, dentro do espaço agroecológico, faz apenas uns cinco meses. Desde o ano passado, essa forma de venda direta ao consumidor tem melhorado para um bom número de famílias agricultoras. “Nós estamos no primeiro ano de experiência da feira agroecológica”, explica Franzé, que tem prestado assistência técnica ao grupo.

Desde o ano passado, uma média de 35 famílias (na época de chuva na região, entre dezembro a março, são cerca de 40 famílias), representando cerca de 25 comunidades, passaram a ocupar uma área específica e padronizada no galpão onde a feira funciona aos sábados.

O grupo começa a chegar das comunidades por volta das 5h30 e ficam até meio dia. As famílias que não podem ir, mandam seus produtos pelos vizinhos. Lá vendem de tudo um pouco, sendo mais uma oportunidade de escoar a produção excedente dos seus quintais produtivos. Outros, como a família de Leandro Lacerda, perceberam que podem aumentar os lucros agregando valor aos seus produtos.

“Minha família foca na alimentação. Bolos, doces, galinha caipira, beiju, cafezinho… Tudo feito em fogão agroecológico, que consome menos lenha, faz menos fumaça e foi construído através do Programa Pró-Semiárido do Governo da Bahia, há cerca de dois anos.”

A foto retrata uma cena de mercado com várias pessoas e diversos itens à venda. Na frente, há uma homem negro, maduro, vestindo uma camiseta branca com o texto “Semiarido” e uma ilustração de um cacto e um sol. Ele está com o braço esquerdo esticado, segurando a haste de um barraca de feira. Sua outra mão está apoiada sobre uma mesa repleta de produtos alimentícios em recipientes de plástico. À esquerda, sua esposa, morena, de meia-idade, cabelos presos por trás da cabeça, e usando uma blusa preta. Há duas crianças, um menino negro pequeno e uma menina morena de cabelos lisos e blusa vermelha, estão à esquerda. Ao fundo, mais barracas de mercado podem ser vistas, e outra pessoa vestida de verde está parcialmente visível.
Leandro Lacerda vende produtos com valor agregado na feira de Campo Alegre de Lourdes
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero

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