A importância da pesca artesanal para as mulheres no interior da Bahia

Originalmente publicado em Mídia Ninja

Grupo de beneficiamento de pescado “Arte Pesca” da Associaçao de pescadoras de Remanso. Foto: Arquivo APPR

A pesca artesanal é uma das atividades fortes na cultura e economia local de Remanso, no interior da Bahia, às margens do Rio São Francisco. As mulheres assumiram um papel fundamental na região, construindo uma associação para gerar renda e emprego com a comercialização dos peixes locais. Graças à luta e articulação junto ao poder público municipal, foi possível acessar algumas políticas públicas para desenvolver o trabalho. Esta é mais uma experiência identificada na campanha Agroecologia nos Municípios, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Após uma articulação que levou anos, foi fundada, em 2009, a Associação de Pescadores e Pescadoras de Remanso (APPR). Fruto da mobilização local, sobretudo das mulheres, foi possível lhes dar mais autonomia no beneficiamento e comercialização ao que era pescado. O grupo delas se afastou da Colônia de Pescadores do município e, depois de altos e baixos, conseguiu adequar sua estrutura para atender às normativas da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). 

Para capacitá-las de forma independente, de modo a se apropriar de todas os mecanismos burocráticos para a constituição e manutenção de uma Associação, as mulheres contaram com o apoio do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Estaduais (MPPE), da Rede de Mulheres e agricultoras da região. A ONG Serviços de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP) também presta assessoria até hoje a APPR. Nesse período, o então governador Jaques Wagner visitou a cidade e, devido à pressão dos grupos, liberou por cinco anos,  por meio de um termo de concessão de uso, a  Unidade de Beneficiamento de Pescados (UBP), do Terminal Pesqueiro da Bahia de Remanso (BA), que estava abandonado. Desde 2018, há um convênio (nº 615/2018), que permite o uso por 10 anos para elas utilizarem para o beneficiamento e comercialização dos produtos da agroindústria.

Na busca dos seus direitos, as pescadoras foram profissionalizando os processos de produção e comercialização, embora ainda não tenham uma unidade de processamento, em diálogo com as instituições financeiras. Após esta fase documental e de fundação, foram aos órgãos e bancos fazer o cadastro da entidade para representar a categoria. Desde então, as associadas (os) puderam adquirir o Registro Pescador Profissional (RGP), emitido pelo Ministério da Pesca e Aquicultura, e ter garantido o direito de acesso a políticas, como  o seguro defeso. Durante os oito meses (março a outubro) de permissão da pesca, contribuem para a Previdência Social com 2,2% sobre o valor comercializado.  Nos outros quatro meses, a pesca fica suspensa e o Rio São Francisco fica restrito para desova dos peixes, conhecida como piracema. De acordo com a Portaria 50 do Ibama, no período de defeso é possível pescar de anzol determinadas espécies, com o limite de  até 5kg de pescado por dia por pessoa.

A pesca artesanal varia de acordo com o período, as fases da lua, a maré, dentre outros elementos da natureza, que determinam a produção. No período do defeso, os associados (as) acessam o auxílio para sustentar sua renda. Nos demais meses, a pesca pode chegar a 20kg ou não render nada, e os valores variam de acordo com as espécies pescadas: surubim, dourado, tucunaré, piranha etc. O beneficiamento do pescado é feito mediante a entrega de 100kg para prefeitura, e após as despesas é tudo dividido igualmente. As mulheres chegam a receber cerca de R$ 200,00 por mês, de acordo com os projetos. Com a entrega ao  PAA e PNAE, chegavam a receber até R$ 500, segundo o relato das lideranças.

Hamburguer de peixe da Associação para comercialização. Foto: Arquivo APPR

Nos anos de 2018 e 2019, cerca de 50 famílias, correspondendo a dois grupos incluindo a APPR, conseguiram entregar muitos quilos de filé e sardinha caseira ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) vendendo R$ 330 mil e R$ 250 mil, respectivamente a cada ano. Em 2020, os grupos responderam a chamada pública e firmaram contrato com a prefeitura de R$ 190.600 para a alimentação escolar, segundo a Associação, só que por conta da pandemia o projeto não foi executado e nada entregue. Com a aquisição da Declaração de Aptidão ao pronaf (DAP jurídica) e o Selo de Inspeção Sanitária Municipal (SIM), que dão acesso às políticas públicas, também executaram vendas para o  PAA via Conab, na modalidade compra simultânea, fornecendo alimentação às famílias carentes da região. Chegaram a vender R$ 126 mil no ano de 2012, mas desde 2017, quando o valor de venda reduziu para R$ 39.559,00, não acessaram mais o Programa. Elas produzem filé e hambúrguer de peixe e sardinha em conserva para os alunos da rede pública municipal, além de vender seus produtos nas feiras e em datas comemorativas na região. 

A presidenta da APPR, Lucilia Freitas Nascimento, e a pescadora Eliete Cunha Damião pressionaram dentro da Secretaria de Agricultura e Pesca do município junto a outras entidades parceiras e o SIM foi criado e aprovado em uma sessão única na Câmara de Vereadores. Um veterinário auxiliou na implementação do certificado, que está sendo atualizado pelo Consórcio Territorial do Sertão do São Francisco, para torná-lo de abrangência regional, pois o atual só permite ao grupo comercializar dentro do município. Antes do selo do SIM só havia autorização da vigilância sanitária, que fazia a vistoria e dava um documento para comercializar na cidade.

De acordo com Edimar Freire, coordenador do SIM e integrante da Secretaria Municipal de Agricultura e Pesca de Remanso, com o Consórcio Territorial do São Francisco (Constef) será possível vender os produtos da associação para dez cidades da região. O projeto é gerenciado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), de Juazeiro (BA), e já se encontra em andamento o convênio nº 615/2018 para a requalificação da agroindústria.

“A Associação está seguindo até agora um trabalho normal, com três ou quatro inspeções ao ano, e, no momento, foi feita uma reavaliação do prédio. Estamos empenhados em melhorar o ambiente de trabalho delas, que é bem necessário. Ao trabalhar com alimentos, temos que levar muito a sério a fiscalização sanitária, mas elas como produtoras são muito conscientes e lutam pelo projeto. A melhoria de renda é significativa e precisamos revitalizar o terminal pesqueiro para qualificar o produto, mas agora estamos parados em virtude da pandemia”, explicou. 

No ano de 2020, os pescadores e agricultores de Remanso não entregaram nada ao PNAE, embora a prefeitura, segundo as lideranças locais, tenha recebido da Associação no setor de licitação toda a documentação com o projeto. “O FNDE depositou os 30% que temos por direito e nós tínhamos produtos para entregar, mas o município não comprou da agricultura familiar por conta da suspensão das aulas na pandemia. No ver deles, precisava de uma logística para comprar, mas nada foi apresentado para atender as normas do Covid-19 de forma que não viesse a prejudicar ninguém. Falaram que guardariam para 2021, mas os kits foram comprados das grandes redes de supermercados e não são adequados à alimentação das crianças”, criticou a representante Lucilia Freitas.

Recebimento do certificado SIM para a Associação. Foto: Arquivo APPR

De acordo com o secretário de Relações Institucionais da Prefeitura, Adriano Ribeiro Paes Landim, a pesca é um dos setores mais importantes da economia da cidade, principalmente como subsistência para as  famílias de baixa renda. Mais de duas mil famílias, de acordo com Paes Landi, vivem exclusivamente desse trabalho e hoje o pescado é comercializado para outros estados. Questionado sobre os recursos do PNAE que não foram repassados ano passado, ele declarou conhecimento sobre as licitações, mas desconhece o motivo de os peixes não terem sido comprados na gestão anterior.

“A nossa gestão vai destinar  50% dos recursos da alimentação escolar para a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar e oriundos da pesca, inclusive os pescados processados. Hoje, temos cerca de 8 mil alunos na rede municipal e o orçamento para alimentação escolar gira em torno de R$ 500 mil por ano. Já fizemos reuniões com os secretários e está sendo elaborado um projeto junto a nutricionista para a introdução dos pescados, da carne de  carneiro e do mel no cardápio para as compras dos alimentos”, afirmou.

Atualmente, a APPR faz parte de diversos conselhos municipais e estaduais, como os de Assistência Social,  Saúde,  Alimentação Escolar e Segurança Alimentar , assim como é filiada a movimentos estaduais de luta pela pesca artesanal. A relação da sociedade civil com o governo municipal na implementação e monitoramento destas políticas foi fundamental.

Edição: Viviane Brochardt

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