Ancestralidade para organizar o futuro

Publicado originalmente no site do MPA. Texto: Alfredo Portugal e Jucimaria Farias
MPA Bahia | Caem (BA)

Entorno de 210 variedades estão catalogadas no banco de sementes de dona Nice e sr. Antônio.

Uma vida dedicada à agricultura. Dona Adelice Pereira, 59, recorda que ainda menina já cultivava sua própria roça, na comunidade de Novo Paraíso, em Jacobina, Bahia. Além do milho, da melancia, da abóbora e de outras variedades, dona Nice, como é carinhosamente conhecida, ajudava no plantio do feijão com sementes que ela mesma fazia questão de guardar ano a ano. A história de Adelice é também a história do cuidado com a terra, do respeito à natureza, do saber tradicional, da soberania alimentar, da agroecologia e principalmente a história das mulheres no campo e das sementes crioulas que alimentam a alma e o coração.

Dona Nice: uma vida dedicada à agricultura

“Quando era o tempo do feijão do ano, a gente batia o feijão, eu já juntava, botava numa cabacinha e guardava quando fosse para o ano eu plantar. Então eu continuei naquela, fui gostando, achei muito bonitinho aqueles modo de semente, aí eu hoje em dia eu tô com essa idade e continuo”.

As sementes crioulas transcendem o ciclo entre a germinação e a colheita, elas materializam a cultura ancestral, dão sentido à vida, trazem o colorido de volta à terra. Seu Antônio Pereira, 64, companheiro de dona Nice traz a lembrança do gergelim que costuma plantar desde criança e até hoje ele tem essa variedade e espalha por toda a região, para toda comunidade. “Desde eu criancinha, essa semente já vem acompanhando a gente e a gente vai sempre incentivando para que ela não acabe na região da gente. E a gente continua cuidando desse banco de sementes e incentivando a comunidade para ver se cresce mais”.

Hoje eles guardam na sala de casa, na fazenda Tamburi, cerca de 210 variedades de sementes e reconhecem mais que nunca a importância desse trabalho para eles e para toda a região. Qualquer pessoa que faz uma visita tem acesso a esse banco de sementes. “Primeiro a gente cuida do meio ambiente pra que a gente não coloque agrotóxico nas sementes da gente, segundo a gente gosta de comer uma comidinha mais saudável e quer passar pra os outros também. Nem só pra gente, o pessoal da nossa comunidade também a gente gostaria que comece uma comidinha mais saudável”, afirma seu Antônio.

Mais de 200 variedades são catalogadas no banco de sementes de seu Valdemar

Perto dali, no município de Caém, Bahia, seu Valdemar Secundo conta que recebeu do pai a primeira semente em 1974, feijão de corda vagem roxa, a variedade que mais produzia na região. Ele diz que certa vez plantou uns 4 tipos de feijões diferentes e esse foi o que mais produziu, três vezes mais que os outros. A partir daí entendeu que o vagem roxa era o melhor adaptado às condições climáticas e ao solo local.

Ele ensina como faz para guardar essa e as outras 200 variedades que hoje compõem o banco de sementes da família por tanto tempo: “Meu pai me ensinou a armazenar no início num canto de casa colocando uma camada de areia, de semente, uma de cinza. Assim era com o feijão, o milho, a melancia. Hoje a gente guarda em garrafas bem sequinho, bem lacrado, cera em volta da tampa, dura até dois anos pra comer, e pra plantar dura mais”.

Josefa Secundo, companheira de seu Valdemar, é quem garante o plantio e os cuidados com as plantas. “Já plantei esse ano feijão de corda, andu, abóbora, fava, melancia, coentro, alface, açafrão, tomate, feijão mulatinho, tirei uns umbu fiz umas polpa. Plantando e guardando sempre tem”.

Dona Josefa colhe uma das variedades de milho crioulo

O que une essas histórias, para além do amor e dos cuidados às sementes crioulas, é o que eles chamam de família: o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Desde 2003 presente na região, vem de mãos dadas na luta pela garantia dos direitos das pessoas do campo, da soberania alimentar e da agroecologia como matriz tecnológica de plantio e cuidado com a terra.

O MPA, através do coletivo estadual de Soberania Alimentar, tem estabelecido debate sobre a necessidade de estabelecer um plano de ações estratégicas, para fomentar o resgate, a conservação e a multiplicação de sementes crioulas. Em parceria junto a órgãos e entidades governamentais, promove a criação de uma rede de sementes crioulas que visa identificar e ampliar a quantidade de guardiãs/os multiplicadoras/es, busca formação e acompanhamento técnico continuado, e ainda promover intercâmbios e a construção de um plano de comunicação.

Atualmente, o Movimento tem ainda a responsabilidade de coordenar a campanha Sementes, Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade, da Via Campesina sensibilizando as famílias campesinas a adotar uma sementes para que cada uma delas possa tornar-se guardiã daquela variedade e essa não se perca de vista, num trabalho permanente.

MPA realiza ação de multiplicação de sementes crioulas através de implantação do sistema agrícola resiliente

Este texto faz parte da série de reportagens especiais produzidas pelo MPA Brasil sobre Guardiões da Agrobiodiversidade, Plantadores de Água e de entrevistas com Ambientalistas. A ideia é despertar a luta em defesa dos nossos biomas e saídas políticas para as emergências climáticas. As publicações especiais irão até dia 5 de junho, dia do Meio Ambiente. Acesse a primeira reportagem aqui

Um comentário

  1. 👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿
    Essa matéria relata sobre a ação do Projeto Sementes Crioulas que o MPA executa, no mesmo formato que o SASOP também tem trabalhado em parceira com o Governo da Bahia e cofinanciamento do FIDA.
    Dona Nice, uma das agricultoras destacadas, foi a guardiã premiada em 1° lugar na nossa Feira das Sementes Crioulas que promovemos durante o SemiáridoShow em 2019. Foi a que mais levou diversidade de sementes e mudas de plantas para a Feira.

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